sexta-feira, 21 de dezembro de 2012


Boemio

Você não é bonito, não tem profissão, não tem rumo, não tem um centavo. Eu sei de todas as burradas que você fez e faz. Mas você me cativou. Seu olhar meigo e maroto, sacaninha, misterioso, despreocupado. Sua cara de quem não está nem aí. Você é boêmio, desleixado, desligado, mas tem estilo, tem seu charme incrível de artista-carente-filho-caçula-mal-compreendido (aliás este é um perfil recorrente). Me ganhou pela curiosidade, que logo se tornou cumplicidade. A verdade é tão implausível e fantasiosa, você tão doido e incoerente, eu pareço tão certinha e centrada. Você é doido, disperso, vagabundo, nunca termina o que começa, mal humorado, irônico, engraçado, inteligente, talentoso, sensível, amoroso, carinhoso, bom amante, adoravelmente imperfeito, descabelado, temperamental, bagunceiro, irritante.

A tua casa, que fica num lugar nada a ver, era um refugio e meu lugar secreto. Toda zoada, bagunçada, a tua cara, desleixada, colorida, viva, musicada. As telas espalhadas, as tintas espirradas. Meu lugar preferido era tua mesa de trabalho, onde você empilhava teus desenhos, teus sonhos, teu coração.  Era você mesmo, sem julgamento, sem filtro. O melhor de você, que ninguém mais sabia quem era. Foi para você que eu coloquei as flores na janela. Foi para mim que você pintou todas aquelas telas.

Para os outros você era um vagabundo, sem rumo, bêbado, boemio, putanheiro, irresponsável, inútil. Me doia o coração, ou porque eu achava que isso não era verdade e você sofria, ou porque era mesmo verdade e eu não queria ver. Me doia por você, que voa sem rumo, mas é capaz de voar muito alto e não sabe disso. Sabe mas não quer. É você quem ata os nós das amarras que te impedem de voar.

Um dia você me disse que tudo aquilo era segredo nosso. Graças a Deus era mesmo. Você pintou o contorno do meu corpo, o movimento dos meus cabelos, a cor da minha boca, a bagunça da nossa cama. Fez esboços do meu rosto e do meu corpo enquanto eu estava distraída, pintou minhas olheiras, minha cara de pateta, meu olhar choroso, minha gargalhada. Me deixou espalhar as tintas nas tuas telas, bagunçar teus discos, derramar vinho no teu sofá.

Um dia eu passei por um grande aperto que não tinha nada a ver com a tua realidade despreocupada, irresponsável e vitimosa. Mas eu te chamei, você me acolheu, ouviu, me escondeu e protegeu. Eu só queria sumir. Me levou num lugar lindo nessa cidade idiota. Me disse que por ali só passavam os campeões, que eu olhasse bem aquele lugar e todas aquelas luzes, e soubesse que um daqueles lugares era meu. Acreditou em mim, sem nem saber porque. E eu acreditei em ti, para poder acreditar em mim.

Tudo acabou de um jeito esquisito. Esquisito como você. Um amor sem eira nem beira. Com você sempre achando que eu era grande coisa, e eu sempre tendo a certeza de que para ser feliz é preciso muito pouco. Você pirou, literalmente. Porque você é pirado, não tem equilibrio nenhum, é de altos e baixos, clinicamente doido. Até hoje eu me pergunto que versão foi essa de você que só eu conheci. Quando acabou, esta sua versão acabou junto. Você jogou fora o que tinha de melhor e resolveu ser o pior que há em você. As notícias sobre você são sempre as mesmas e me entristecem. Já nem pergunto mais.

Estive com você nos seus momentos altos, quando por amor você se sentia um herói salvador, dono do mundo, capaz de tudo, criativo, lindo, brilhante, feliz. Aquela sala bagunçada virou um atelier, com tuas tintas e equipamentos, as telas, a luz, a mesa, os esboços nas paredes, a música. Era viva, entusiasmada, esperançosa, cheia de planos, inspirações, amores, paixões. Depois você voltou a ser soturno, deprimido, autodestrutivo, calado e misterioso, ironico, cruel, egoista.  Me disse que aquilo era doença e que te perdoasse.

Você me matou para se proteger do seu passado. Me disse que já havia ficado doente de amor, paranóico, doido, viciado, insano. Você me confessou que tudo aquilo era muito, e que um dia eu ia querer mais do que aquela baderna adorável. Então por precaução e para economizar nosso sofrimento você, no dia do meu aniversario, me disse que era um dia feliz, e por isso deixava a minha vida. De presente me deixou um quadro, o meu preferido e mais bonito.

Você insiste em ser boemio, sacana e irresponsável, você insiste em manter essa sua versão “oficial” de pessoa ruim, egoísta e que não liga para nada nem para ninguém, nem para si mesmo. Mas eu vi o teu lado mais bonito e fiz parte dele. Você me protegeu, me fez sentir única, linda, pintou tudo o que eu tenho mais bonito e só descobri por você.

Você vendeu as telas que eram minhas. Vendeu a minha alma naqueles desenhos e cores. Vendeu meus contornos, vendeu o meu amor. Por serem tão verdadeiros é que você os vendeu, sem pedir licença, sem pedir perdão.

Estou por aí nos teus traços e cores, pendurada nas paredes de alguém.  Você está aqui nos meus sentimentos e palavras, e no único desenho que você me deu.  Foi naquele dia que você me disse: “Não me deixe, não agora”. Jamais iria te deixar. Mas foi a tua mente insana e incontrolável quem te abandonou. A tua paranóia encheu e coloriu as telas, mas comeu meus sentimentos.  E você vendeu meus traços, minha cor e meu amor.

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